REFLEXÃO DE VIAGEM: região aurífera do Alto Tapajós (Pará)

Duas visitas ao Norte do Brasil, me levaram a rever conceitos, repensar costumes e reconhecer a pluralidade e as dificuldades do povo brasileiro. Neste post aqui escrevi sobre Barcelos (no estado do Amazonas). Agora, farei um breve (mentira, é longo!) panorama do estado do Pará, que também te leve a reflexão. Guarde este texto e leia aos poucos ...




Em 2016, tive o privilégio de realizar um trabalho voluntário no estado do Pará, numa cidade chamada Jacareacanga. O nome é complicado tão quanto chegar até lá, rsrs. São 3 dias de viagem. Um dia de avião ( com várias conexões, saindo de Salvador), 1 dia de lancha até Itaituba, pernoite na cidade, e noutro dia, enfrentar 8h de estrada de terra, atravessando a Transamazônica ( Br 230) e o Parque Nacional da Amazônia. É cansativo, mas olhando o aprendizado e o que deixei de bom, esqueço os percalços e realizaria tudo de novo.

COMPORTAMENTO

Falando em aprendizado, este começou antes de pisar em terras paraenses. No avião, conheci uma paraense bem falante que vende confecções em Belém e trabalha das 8-12h/ 16-20h. Não entendi o porquê das horas vagas de 12-16h, ela me respondeu que neste horário o comércio fecha, o povo vai descansar e em Belém sempre chove as 15h. 😱😱 Conversa vai, conversa vem, ela perguntou meu nome e quando respondi, ela me disse a senha do meu tablet. 😱😱😱😱. Oxente Vaneza! Que história é essa!? Pois é, uma prévia do paraense: intrometido na vida alheia.

Da percepção de "intromissão" passo ao conceito da simplicidade e atenção com o outro. Nas cidades em que passei, percebi que os paraenses são muito atenciosos e prestativos, seja em dar informações ou resolver alguma situação. Diante de dificuldades, tem um espírito esportivo e levam quase tudo na brincadeira. As crianças são educadas e desconfiadas, mas basta um sorriso que o gelo é quebrado.

Os indígenas adultos também são bem desconfiados. Sempre olhando pra baixo e se falam o idioma próprio (neste caso, o munduruku) se sentem inferiorizados e retraídos. Não se referem ao idioma deles como idioma, e sim, como gíria. A situação fica mais leve quando mostramos real interesse em sua cultura e os tratamos com respeito.

As famílias são grandes e as mulheres tem muitos filhos. Seria consequência dos auxílios que o governo oferece? É comum as crianças andarem nuas pelas ruas de cidades do interior e tomarem banho em qualquer igarapé, mesmo que a água seja imprópria para banho. É comum as mães oferecem, darem ou venderem seus filhos.

A beleza dos paraenses impressiona e as mulheres são bem vaidosas. Uma beleza que mistura traços de índios, negros e brancos e que chama atenção, mas em sua maioria predomina os traços indígenas. De fato, somos fruto de uma mistura!

ALIMENTAÇÃO

Neste aspecto, tive que prestar atenção ao ciclo da natureza. Entendi que não se encontra açaí o ano todo, não se acha castanha do Pará (que já querem mudar o nome pra castanha do Brasil, pois se planta castanheira em vários estados) todos os meses nas feiras. Ah, castanha no Pará não é vendida descascada. Frutas tão comuns como banana e melancia não são tão comuns por lá e custam um absurdo. Exemplo: uma melancia média que em Salvador custa 5 reais, eu tive que juntar com mais 2 amigas pra comprar por 15 reais! Mas eles menosprezam as mangas que dão aos montes e deixam virar lama aos pés das mangueiras. Vai entender! Quando o rio sobe não tem como pescar, então se sobrevive com outros tipos de carne e por incrível que pareça a pecuária é forte no Pará, e tem cidades em que o peixe é mais caro que carne de boi ou frango. Quem dita a ordem do dia é a natureza!
vatapá com folha de jambu


Não posso deixar de mencionar as maravilhas da culinária amazônica: tambaqui, tucunaré, pirarucu, mapará (o salmão da amazônia), e muitos outros. Sempre me perguntam: qual a diferença no sabor entre o peixe de água doce e o de água salgada? Em meu paladar, o peixe de água doce tem carne firme e serve melhor assado. Já o de água salgada serve melhor como moqueca de dendê. E tenho que dizer que amo tacacá, vatapá e açaí (açaí fora do Norte não é açaí, é uma mistura rotulada de açaí!). Gente, não provar essas iguarias é um pecado!

TRANSPORTE

De Santarém a Itaituba são 6h de lancha subindo o Rio Tapajós. Aos poucos as cidades ribeirinhas aparecem: Fordlândia, Aveiro, Brasília Legal e Barreiras. Uns passageiros descem e outros sobem. Tudo rápido e prático. Algumas paradas são na areia da praia e outras no píer do porto, ora de concreto, ora de madeira caindo aos pedaços.

Por fim, e para minha alegria, chego em Itaituba. E você já ouviu falar desta cidade? Nem eu! Os primeiros habitantes foram os índios mudurucus e sua extensão abrangia os distritos de Jacareacanga, Trairão e Novo Progresso. Nesta cidade operou um dos aeroportos mais movimentados do mundo na época da descoberta do ouro na região aurífera do Alto Tapajós, na década de 80. De uma currutela ( locais onde os garimpeiros realizam seus comércios) tornou se a 15ª cidade mais populosa do Pará, com cerca de 99 mil habitantes, e a 13ª com maior PIB do estado. Junto com o tal progresso vieram os problemas como violência e crescimento desordenado.

De Itaituba até Jacareacanga são 400km e 8h em estrada de terra, atravessando o Parque Nacional da Amazônia e a BR230, conhecida como a Transamazônica. É uma estrada perigosa, tem muitas curvas, árvores enormes de um lado e do outro, muitas árvores que caem na estrada e nenhum posto de gasolina. Isso mesmo! De Itaituba até Jacaré, só tem posto em Jacaré. Animais na estrada é comum, porém não tive o prazer de ver uma onça, cobra e animais exóticos. E as história que ouvi desses encontros são hilárias ( para não dizer trágicas) e cheias de emoção, inclusive um caso de um homem que encontrou um filhote de onça, colocou no pescoço e daí a mãe do filhote viu. Já sabe no que deu né?!


numa parte a Transamazônica beira o Rio Tapajós

noutra parte, atravessa a mata fechada do Parque Nacional da Amazônica 


E o mais temível acontece quando chove: a estrada fica intransitável. Carros para este tipo de terreno, só as caminhonetes Hilux, mas tem gente que se arrisca de carro pequeno, é pra aumentar a adrenalina, rsrs. Há muitas pontes de madeira sobre os igarapés, até onde eu contei, foram 16, mas eu não estava nem na metade do caminho, rsrs. Ao longo da estrada o ônibus fez algumas paradas nos pontos de apoio aos garimpos (alguns com restaurantes), assim descia do ônibus homens qua aparentavam de 30- 60 anos, todos do Nordeste, principalmente do Maranhão, que foram tentar a vida nos garimpos. Isso ainda existe? Existe, e muito!

GARIMPO

Pois bem, a atividade de garimpo é uma das mais perigosas que existe. Um dos senhores que conheci, que aparentava uns 50 e poucos anos, fazia o trabalho de mergulhador que consiste basicamente em colocar uns equipamentos de mergulho e descer mais de 15 metros de profundidade no Rio com uma espécie de aspirador (maraca) que suga tudo e leva para uma máquina que vai separar o que é ouro e o que não serve pra nada. O mergulhador pode levar até 2h embaixo d'água. Tem mergulhador que desce vivo e sobe morto (talvez nem suba), pois morre soterrado. Tem gente que faz isso durante muitos e muitos anos. Este senhor que mencionei estava com um outro colega, tão idoso quanto e iam para Porto Rico. Em minha inocência pensei até que era Porto Rico, no Caribe, mas depois fui informada que era um garimpo. De Jacareacanga eles iriam de voadeira (3h em barco pequeno) para este que é um dos maiores garimpos da Região.

homens que desceram do microônibus em que eu estava para trabalhar nos garimpos
Outro detalhe: são pessoas analfabetas. Alguns que entraram neste microônibus pediram para que eu lesse na passagem qual era a poltrona deles. E quanto recebe essas pessoas por este trabalho? Bom, pelo que ouvi e vi, ouro dá dinheiro, mas poucos realmente enriquecem e constroem fortunas. Uma cozinheira no garimpo ganha entre 3-5 mil reais por mês que serão pagos em ouro ou em dinheiro. Um garimpeiro (trabalhador) ganha pelo que ele consegue. Não existe salário fixo. Há garimpeiros (donos de garimpos) que ganham muito dinheiro, mas é muito dinheiro mesmo! Porém conheci garimpeiros que não tinham nem uma casa para morar. Moravam de favor na casa de outros. A cozinheira só pode ver a família de vez em quando a cada 6 meses, assim como outros que lá trabalham. Dentro do garimpo tudo é muito caro, um perfume que custa 60 reais, dentro do garimpo custa 150 reais. Parece filme ou Globo Repórter, né? Mas isso é Brasil! Daí, pensei: o migração dessas pessoas do Nordeste para esta região não nos parece com a dos africanos, haitianos e sírios para a Europa? É preferível morrer buscando uma vida melhor (mesmo que ilusória) a morrer de fome na seca?

note o homem na asa do avião abastecendo
Muitos garimpos estão em locais isolados e para se chegar só de avião, mas de pequeno porte, os chamados teco teco. E são bem pequenos mesmo, ao longo da estrada vi vários. E a todo momento eles sobrevoavam Jacareacanga fazendo voos rasantes e não preciso mencionar que alguns já caíram em mata fechada, como neste caso aqui, embora não foi uma tragédia relacionada ao garimpo. A destruição ao ecossistema produzida pela atividade garimpeira é clara. Vi ao longo da estrada vários igarapés tendo seu curso d'água desviado e muitas árvores destruídas, sem falar no uso do mercúrio que é um metal pesado tóxico que causa câncer e é despejado nos rios.

Escrever sobre garimpo é algo complicado, é uma realidade dura e cruel, embora tenha aqueles que se acostumem nesta atividade, aliás tem pessoas que nasceram no garimpo e não conhecem outra vida além desta. Não vou mencionar histórias ligadas a prostituição, drogas, brigas e morte, pois isto é um assunto ainda mais espinhosos e foge da proposta deste texto. No entanto, os relatos que ouvi me fizeram respeitar ainda mais este povo e ver que julgar a realidade dos outros baseada em nossa realidade não é justo. Acredito que é preciso um olhar mais sensível sobre a situação que leva pessoas a viverem de tal maneira.

SAÚDE

Mais incrível ainda é saber que as regiões de garimpo são focos de malária. Conheci uma senhora que trabalhou na cozinha de um ponto de apoio de um garimpo ( uma espécie de balsa) dentro do rio, e adquiriu malária várias vezes. O marido dela me disse que teve malária várias vezes e de vários tipos. Boa parte da população que vive nesta região também já adquiriu malária mesmo que não trabalhe no garimpo. Assim, para que visita a região, usar roupas longas é fundamental. Ah, lembrando que não há vacina para esta doença e o tratamento é demorado. Depois entendi porque vi tanto sal amargo nas farmácias ...

Na volta de Itaituba para Santarém, veio um bêbê com suspeita de microcefalia que estava sendo transportado para algum hospital de Santarém. O soro que alimentava ele foi pendurado no bagageiro superior da lancha. Se fosse um caso pior e urgente? Se utilizaria algum teco teco de algum dono de garimpo. Cadê o SAMU? Cadê um avião para o SAMU da Região? Cadê uma ambulancha? Pois é, esta é a realidade nua e crua: o Norte carece do básico e o povo se vira como pode lutando para sobreviver.

SEGURANÇA

Quando fiquei sabendo que ia pra Jacaré, fui buscar na internet infos sobre este lugar e uma das primeiras reportagens é um caso em que os índios tocam fogo na Delegacia da cidade. Mas vamos com calma ... a criminalidade cresceu de maneira alarmante, porém lá pude usar livremente o meu tablet, algo que jamais faço em Salvador. Há violência e até casos brutais, mas não são frequentes. Fiz toda minha viagem sozinha e em nenhum momento me senti insegura.

PRESERVAÇÃO MEIO AMBIENTE

Recentemente, o presidente Michel Temer acabou por decreto com a Reserva Nacional de Cobre e seus Associados (Renca), uma área rica em ouro e outros minérios de 4,7 milhões de hectares na divisa entre o sul e o sudoeste do Amapá com o nordeste do Pará.

A medida deve acelerar a chegada de infraestrutura e de pessoas a áreas de floresta nativa para atividades de mineração, reproduzindo na região a mesma falta de governança que permite o avanço do desmatamento e da grilagem de terras na Amazônia.

Para ler a matéria completa veja neste link.

Jacareacanga, sudoeste do Pará
Outras leituras:
Lembrança de Um Velho Garimpeiro
Amazônia por um Sulista
Diário Cuiabá
Ambiente de Trabalho em Garimpo e Saúde

Daria pra fazer um livro né? A visão romântica do resto do Brasil em relação ao Norte é legal e está muito ligada a natureza, mas a realidade desta região só é conhecida por quem de fato se interessa por gente.

Se você quiser contribuir com algumas palavras, fique a vontade.

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